terça-feira, setembro 28, 2010


Epitáfio em 8mm

Dizem que na hora que a gente morre a nossa vida passa inteira, como um filme, na nossa cabeça. Se isso é verdade, eu não sei. Mas sei que, aos 90 anos, a única coisa que faço, além de esperar o dia em que vou acabar com minha dúvida, é tentar lembrar de cada momento que vivi, talvez, dirigir a minha versão antecipada desse filme. E podem ter certeza: nenhuma obra de ficção chegou perto de imaginar uma história tão estranha, louca e mais uma lista imensa de adjetivos, que nunca conseguiriam resumir esse quase século de vida.
Mas não é de minhas loucuras que vou falar. Não por medo das reações ou para me resguardar – na minha idade, não tenho muito que perder. Mas, sim, das descobertas que fiz nessas últimas semanas, quando comecei a bolar o roteiro do meu filme fúnebre. Um tipo de utilidade pública, quem sabe um legado à próxima geração. Alertar aos que virão para que não cometam os erros que cometi.
Sozinho em minha casa – assim como em quase toda a minha vida – não acho coincidência que venha agora à minha cabeça a Dona Marta. Uma solteirona que morava na casa ao lado da minha quando eu tinha uns 11 ou 12 anos. Lembro que todos comentavam: “Coitada! Tão sozinha. Pobre Dona Marta, vai morrer sem ninguém.” E eu realmente me solidarizava com a “triste” história daquela mulher. Acontece que, por mais que tenha marcado essa fase da minha vida, D. Marta havia sumido de meus pensamentos por todos esses anos. Até que há pouco tempo, com um estranho frio na barriga, me dei conta de que eu me tornei a versão masculina (e um pouco mais magra) de Dona Marta.
A primeira sensação foi péssima: senti a mesma piedade que sentia da amargurada balzaquiana que marcara minha infância. Pensei que havia jogado fora todos esses anos, desperdiçados, com ninguém além de mim. Mas foi como uma lâmpada que acende na cabeça dos desenhos animados que pensei: “quem melhor do que eu, para compartilhar a minha vida comigo mesmo?” Isso mesmo! Essa frase, à primeira vista incoerente, iluminou completamente meu pensamento e fez todo o meu sentimento de frustração ser transformado em um tipo de orgulho que não sentia desde o meu primeiro orgasmo.
Vi que em todo esse tempo ninguém teve mais importância do que eu, para criar o homem que fui e que sou. Por mais que tenha amado meus amigos, percebi que meus sucessos não teriam se realizado se não fosse por mim e por mim somente. Não graças à constante “ajuda” de todos. Assim como não agradeço à minha família nenhuma de minhas conquistas, nem os culpo por meus fracassos, porque tenho a mais firme convicção de que, se não fosse por mim, novamente por mim, nada teria acontecido. Tampouco creio agora que tudo que fiz ou deixei de fazer tenha sido obra de um onipotente senhor barbado, sentado em seu cômodo trono nas nuvens. Um senhor que, por muito tempo, me fez acreditar que meu sucesso era devido a ele, tirando todo meu mérito. E me isentou da responsabilidade de meus fracassos, um peso que eu e todo mundo deve sentir, para amadurecer e aprender.
Foi com um frio na barriga, maior do que o anterior, que parei e pensei em meus amores. E vi que, assim como tudo que tinha feito, cada gesto de amor que dediquei à outra pessoa, foi um gesto de amor para mim mesmo. Cada “te amo” ao pé do ouvido, uma declaração de amor a mim mesmo. Cada privação, cada loucura pelo outro era na verdade, para mim. Descobri que não era por meus amores que me apaixonava, mas sim pela pessoa que me tornava ao lado destes, que com tanto fervor beijava.
Foi assim, sozinho, sentado em minha varanda, que achei um novo sentido pra minha vida. Olhando para dentro de mim, em busca da minha última grande produção, conheci a pessoa mais importante desta grande história: eu. E agora bate um sentimento estranho, uma paz tão forte que chega a dar medo. Sinto o vento calmo batendo em meu rosto, atrapalhando meu cabelo. É com um imenso orgulho das minhas descobertas e com o sorriso torto nos lábios que vejo, pela ultima vez, o letreiro subindo: FIM.

 Marcelo Massensini - 2006

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